quarta-feira, 8 de junho de 2016

Pagando propina, paciente 'fura fila' no HC

Pagando propina, paciente 'fura fila' no HC

DIÁRIO revela esquema de venda de consultas no maior e mais conceituado hospital público de SP
Por: Diário de S. Paulo 
Lucilene Oliveira
lucilene.oliveira@diariosp.com.br
Amanda Gomes
amanda.gomes@diariosp.com.br
Almeida Rocha
almeida.rocha@diariosp.com.br
Furar uma fila que pode demorar anos e anos para chegar a sua vez. Ser atendido por um médico especialista no maior complexo hospitalar da  América Latina e um dos mais conceituados hospitais públicos do país, o Hospital das Clínicas de São Paulo. Ter acesso a cirurgias, exames caros e até medicamentos. Tudo isso é possível pagando propina para um grupo de funcionários do hospital.
Nas últimas três semanas, o DIÁRIO acompanhou o funcionamento de um esquema de corrupção que começa com um servidor público do último escalão do HC e termina dentro de um consultório, com o paciente que comprou a vaga, no caso a própria reportagem, sendo atendido por um especialista de renome.
O suborno, revelado ao DIÁRIO por ao menos duas pessoas, funciona dentro do complexo ligado à Secretaria Estadual de Saúde, do governo Geraldo Alckmin (PSDB), à luz do dia.
Funcionário recebe dinheiro para dar um 'jeitinho brasileiro' / Foto: Almeida Rocha/DiárioSP
O grupo é formado, pelo que a reportagem identificou, pelo funcionário da manutenção, auxiliares administrativos e ao menos um médico que, no mínimo, é conivente com tudo o que passa à sua volta.  Por R$ 380, a reportagem obteve a  matrícula do HC (um cartão de identidade que comprova ser paciente do Hospital das Clínicas), furou a fila do SUS (Sistema Único de Saúde)  e recebeu  uma receita  do neurologista. Um cidadão comum precisa ficar em uma fila para conseguir ser atendido por esse tipo de médico no mesmo hospital, isso se ele tiver um encaminhamento de uma unidade de saúde.
Aos médicos, cabe a oferta de brechas em suas agendas “oficiais” para atender os pacientes conduzidos até a porta do consultório pelo servidor. Tudo é feito pelo auxiliar de serviços gerais Dorivaldo Teixeira Santos, responsável pela captação dos “clientes”. Ele, inclusive, entregou os documentos do doente, apesar de essa passar longe da sua função original.  
Os R$ 380 pagos a Dorivaldo, em duas vezes (uma parcela de R$ 200 e outra de R$ 180, quando a carteirinha foi entregue) prejudica milhares de pacientes que aguardam na fila do HC. Nas gravações, não é possível provar que o médico fica com parte do dinheiro, mas é clara a conivência do “doutor”. 
O primeiro pagamento foi feito no dia 19 de maio. O segundo, no dia 25 do mesmo mês. Seis dias depois, a repórter foi atendida pelo neurocirurgião Bernardo Assumpção de Mônaco, numa sala do Ambulatório de Neurologia, no 6º andar do HC. O eletrocardiograma não foi marcado, mas Dorivaldo garantiu ser  possível fazer o agendamento para um dia depois. O DIÁRIO, porém, optou  por encerrar a investigação.
A reportagem comprovou que com o “jeitinho brasileiro”, como a corrupção é definida pelo funcionário, é possível conseguir, além da consulta, exames de tomografia ou até mesmo ressonância magnética, procedimento em que a fila para pacientes considerados eletivos (não urgentes) chega a ser de um ano na rede pública. Cada expediente tem um preço.
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Outro encontro entre a reportagem e Dorivaldo / Foto: Nico Nemer/DiárioSP
Não é possível estabelecer ao certo quantos pacientes oriundos do esquema são atendidos por dia nos ambulatórios e laboratórios do complexo.  Na  data em que a reportagem esteve no departamento de neurologia para a consulta, um homem  levado por Dorivaldo também aguardava o procedimento. “Meu marido fez  tratamento completo no Incor (Instituto do Coração) graças ao  Dorival (como o auxiliar é conhecido). Ele caiu como uma bênção na minha família”, disse.  
Mais do que agendar a consulta médica ou o exame laboratorial, o esquema garante, por meio do  cartão de identidade hospitalar, que o comprador torne-se paciente vitalício do hospital. É o número único de matrícula que permite a ele ser atendido pelos especialistas do HC. “Hoje não entra mais (no HC). Ainda bem que tem essa menina da matrícula e ela consegue fazer do ‘jeitinho brasileiro’”, diz, sem rodeios, o interlocutor do esquema. 
Em contatos posteriores, o funcionário falou que uma pessoa chamada Francisco seria o auxiliar administrativo responsável pela emissão do documento de acesso, na ausência da chefia do setor. O DIÁRIO não conseguiu confirmar esse nome.   
Confira o vídeo com a conversa entre a repórter e Dorivaldo:
Confira na íntegra as conversas com o auxiliar
19/05/2016 - Por telefone
Dorivaldo: Eu consigo fazer assim. Você tem de trazer a xerox do CIC, RG e comprovante de endereço. Aí eu vou fazer uma matrícula para ela (suposta paciente) e marcar uma ressonância do crânio. Ela faz o eletro e passa com o neuro, que é um professor amigo meu. Ai ele vai ver os exames. Ele atende de segunda e terça-feira, à tarde. Só não passa o meu telefone para ninguém. Só para pessoas de confiança. A matrícula é com tudo. Eu faço para você por R$ 380. Mas você não fala que pagou nada, você fala que conseguiu de graça.
DIÁRIO: Esse preço são para os dois procedimentos? 
Dorivaldo: Sim. Mas  você não fala que pagou nada. Se você trazer isso para mim amanhã (sexta-feira), ela já passa (no médico) na segunda-feira. 
DIÁRIO: Eu estava tentando matricular ela no HC, mas está muito difícil entrar. 
Dorivaldo: Hoje não entra mais. Ainda bem que tem essa menina da matrícula e ela consegue fazer do “jeitinho brasileiro” de matricular. Ninguém matrícula mais no HC hoje em dia. Se você trazer isso para mim amanhã, já converso com ele e faz esse registro. Ela já fica com esse cartão, que é definitivo no hospital.
DIÁRIO: O médico é bom mesmo?
Dorivaldo: O professor Bernardo é gente boa. 
DIÁRIO: Depois vai ter de pagar mais alguma coisa?
Dorivaldo: Não. Nem fala nada. Isso (o valor de R$ 380) eu estou te falando porque a menina (da matrícula) pede para as pessoas deixar um dinheirinho. 
DIÁRIO: Amanhã eu já tenho que levar o valor para você ou dá pra gente segurar e pagar depois?
Dorivaldo: Não. Pelo menos 50%. Se qualquer coisa você quiser vir amanhã mesmo, você me avisa porque eu já falo com a menina. 
DIÁRIO: Posso confiar, então?
Dorivaldo: Pode. Você não é a primeira não. 
DIÁRIO: Você ajuda bastante gente?
Dorivaldo: Ajudo. Ajudo bastante. Por enquanto ainda está dando para fazer. Vai chegar uma hora que não vai dar para fazer nem assim. 
DIÁRIO: Você consegue fazer há muito tempo?
Dorivaldo: Faz muitos anos. Mais de cinco anos, mais, uns seis, sete anos.
23/05/2016 
Conversa pessoalmente. Entrega do dinheiro
Dorivaldo: Eu vou mandar fazer  (a carteirinha) agora à tarde. Sem essa matrícula não adianta porque se ele for pedir exame não vai ter o registro. Eu vou falar com Francisco (suposto funcionário responsável por fazer a matrícula) agora às 15h. Aí, quando for amanhã, umas 8h, você me liga porque se ele não conseguir matricular ela hoje ou amanhã cedinho a gente só vai conseguir passar ela na outra terça-feira, mas eu faço o possível para ser amanhã.
24/05/2016 Por telefone
DIÁRIO: Oi, Dorival, a carteirinha está pronta?
Dorivaldo: A pessoa já digitou. Eu vou fazer o seguinte: colocar a sua irmã na terça-feira que vem mesmo. Hoje ele (o médico) vai vir e tem uma pessoa também que ele vai atender, mas (como) estará em cirurgia, ele vai chegar umas 17h30. O cartão dela eu já vou pegar hoje. Aí fica para terça-feira que vem e na segunda-feira você me dá uma ligadinha para nós confirmar (sic) porque ele pode ter uma mudadinha. Segunda-feira, você pode me ligar depois das 10h.
Dorivaldo: No dia você que vai com ela? 
DIÁRIO: Sim. 
Dorivaldo: Então eu vou arranjar um cartão de acompanhante para você entrar e chegar aqui não ter que pegar fila. Ela pode entrar com o cartão dela e para você eu arranjo um cartão de acompanhante. 
DIÁRIO: Na terça-feira você me dá esse cartão?
Dorivaldo: Isso. Aí no dia eu já fico com o cartão e quando você chegar eu vou ter de levar vocês até o médico e eu já te passo o cartão para você entrar na catraca. 
25/05/2016
DIÁRIO: Oi, Dorival. Eu estou no Metrô Clínicas para pegar a carteirinha.
Dorivaldo: Eu tinha esquecido desse caso hoje, mas vou pegar ela aqui no armário do meu colega.
DIÁRIO: O restante do valor está aqui. São R$ 180. Confere para verificar se está tudo certinho.
Dorivaldo: Não precisa contar. Não é bom contar o dinheiro aqui.
31/05/2016   Consulta com o médico
Neurologista Bernando A. de Monaco: Com esse remédios deve melhorar, se não melhorar me avisa. Avisa o Dorival que ele vai vir falar comigo.
DIÁRIO opina
Faxina no HC
A investigação que o DIÁRIO promoveu no Hospital das Clínicas e todos os métodos usados pela reportagem são de conhecimento do Ministério Público. O escândalo que acontece nos corredores do hospital, que é motivo de orgulho para os paulistas, precisa ser investigado até o fim. O que a sociedade espera agora é uma ação de limpeza com demissões, expulsões e, se for o caso, prisões.

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